09 março 2016

Luminosa coleção


A adaptação para o cinema de O Escaravelho do Diabo, com estreia prevista para breve, tem sido aguardada com grande expectativa. Clássico da série Vaga-Lume, o livro de Lúcia Machado de Almeida faz parte da memória afetiva de várias gerações de brasileiros que cresceram lendo a inesquecível coleção da editora Ática.

As edições das décadas de 1950 e 1970 de O Escaravelho do Diabo
Lançada na virada de 1972 para 1973, as obras eram voltadas para o público infantojuvenil, apesar de nem todos os livros serem exatamente “infantis”. Alguns tinham até temas bem maduros. Ao longo do tempo, a coleção passou por algumas alterações no layout, mas suas capas e ilustrações permanecem marcantes até hoje. Exemplos não faltam de que a Vaga-Lume era muito mais do que uma simples coleção de livros infantis. Chegou a ter por volta de 100 títulos em catálogo — de autores como Orígenes Lessa, Marcos Rey, Luiz Puntel, Maria José Dupré e vários outros.


Alguns foram escritos sob encomenda, especialmente para a coleção. Outros, já existentes (mas quase esquecidos), foram reeditados e ganharam novo destaque. Foi o caso de O Escaravelho do Diabo, publicado originalmente em folhetim, na revista O Cruzeiro, em 1956. 

Entre especulações acerca de seu possível fim, a coleção se mantém de pé — bem menor e graficamente remodelada — ainda que hoje sem a representação que tinha para os jovens de duas ou três décadas atrás. "Os tempos mudaram e, com o passar dos anos, ela se tornou uma coleção simples, tradicional. Não sei se ela corresponde ao modelo de sensibilidade do jovem de hoje", comentou Fernando Paixão, editor de uma das fases áureas da série, em entrevista para o jornal Estadão (26 de setembro de 2015).

É um pena que os jovens de hoje fiquem por fora da riqueza de tantas obras da nossa literatura, presentes na coleção da editora Ática. Os enlatados tomaram o lugar de tradicionais autores nacionais que faziam a cabeça da garotada até a década de 1990 e que hoje são desconhecidos para esse público.

Quando se fala da Vaga-Lume, é difícil citar um livro favorito. São tantos os títulos marcantes que é preciso fazer um apanhado. Por isso escolhi dez que marcaram muito minha infância e pré-adolescência. E mesmo assim, a seleção não foi fácil, pois a tendência era esticar cada vez mais a lista. Mas me ative a esses dez:


O Feijão e o Sonho (1938/1981) - Orígenes Lessa


Publicado pela primeira vez em 1938, o livro conquistou, no ano seguinte, o Prêmio Antônio de Alcântara Machado, da Academia Paulista de Letras. Ultrapassou a marca das cinquenta edições e chegou a ser adaptado para a teledramaturgia, com grande popularidade. No começo da década de 1980, passou a fazer parte da coleção Vaga-Lume. A trama gira em torno do poeta Campos Lara, um sonhador, voltado para o seu ideal de criação e disposto a todos os sacrifícios para viver de sua arte, a literatura. A esposa, Maria Rosa, é uma mulher corajosa e batalhadora, de pés no chão, inconformada com a falta de senso prático do marido e sua 'alma de artista'. Sempre às voltas com o trabalho da casa e a criação dos filhos, Maria Rosa vive a exigir de Campos mais empenho e menos sonho, o que faz com que a relação do casal seja conturbada.
"É a história de um poeta, em que nos sentimos um pouco retratados todos nós que, fazendo versos, romance ou jornalismo, não somos capazes de realizar na vida prática o que tão facilmente alcançam os fazendeiros, os comerciantes, os industriais, os felizardos que nasceram sob o signo de Mercúrio e, multiplicando zeros, chegam rapidamente aos milhões. Ideais, sonhos, simples anseios, a fatalidade de pensar, a desgraça de escrever, a adoração de bem do belo — olvidado ou inatingível, o feijão que simboliza a matéria, a necessidade, a alimentação, o vestuário, a casa e, portanto, o proprietário, o armazém, o judeu das prestações, em suma: o dinheiro." (Rubens do Amaral - Folha de S. Paulo, 1º de junho de 1938)


Éramos Seis (1943/1973) - Maria José Dupré


É o livro da coleção pelo qual tenho mais carinho, pois foi presente de minha tia mais querida, já falecida. Conta a história de Dona Lola, uma batalhadora mulher que faz de tudo pela felicidade de sua família, cuja história também ficamos conhecendo. Dona Lola é casada com o severo Júlio, com quem tem quatro filhos: Carlos, Alfredo, Julinho e Isabel. A narrativa perpassa cerca de duas décadas, começando nos anos 1920 e terminando nos anos 1940, durante a II Guerra Mundial. São comoventes as passagens que narram as alegrias e tristezas da família, sempre pela ótica da bondosa Dona Lola. Conquistas, perdas, dramas e alegrias vão sendo desfiados ao longo dos anos. A prosa de Maria José Dupré é simples, mas extremamente envolvente e apaixonante, ainda que a história carregue boa dose de melancolia. Publicado originalmente em 1943, com grande sucesso, foi adaptado para o cinema argentino e para a tevê brasileira, em duas ocasiões. O romance ganhou uma enorme sobrevida ao ser incluído na coleção Vaga-Lume, no começo da década de 1970. Traduzido para o sueco, o francês e o espanhol, Éramos Seis recebeu o Prêmio Raul Pompéia, de 1944, pela Academia Brasileira de Letras. 


O Escaravelho do Diabo (1956/1972) - Lúcia Machado de Almeida


Em uma pequena cidade no interior de São Paulo, Hugo, irmão de Alberto, recebe um misterioso pacote com um escaravelho dentro (espécie de inseto que lembra um besouro). Mas não dá muita importância ao fato. No dia seguinte, Hugo é encontrado morto, com uma espada espanhola cravada em seu peito. Alberto, inconformado com a morte do irmão, resolve descobrir o mistério do assassinato. Na verdade, trata-se de uma série de assassinatos. Mas a única pista que Alberto tem sobre os crimes é que as vítimas são sempre ruivas e recebem um escaravelho pelo correio antes de morrer. Ele precisa descobrir o que está por trás dessas mortes antes que outros moradores da cidade se transformem em vítimas. Qual a relação entre ruivos e escaravelhos? Quem será o próximo? Um dos títulos mais irresistíveis da coleção. Natural de Nova Granja, interior de Minas Gerais, a autora notabilizou-se principalmente por seus livros da série Vaga-Lume, que fizeram muito sucesso nos anos 1980.


Tonico (1977) - José Rezende Filho


Tonico, um garoto de 13 anos, sonha com uma vida independente. De família pobre do subúrbio do Rio de Janeiro, vê sua vida mudar de uma hora para outra após a morte do pai. Os estudos e brincadeiras vão conviver também com exigências de gente grande, como o trabalho e outras responsabilidades. Tonico mora com duas irmãs, a mãe e a avó. Começa, então, a ganhar um pequeno sustento como engraxate, percorrendo as ruas com o amigo Carniça, garoto negro que desde os seis anos trabalha nas ruas da Zona Sul carioca. Visto com péssimos olhos pela mãe de Tonico, Carniça torna-se pouco a pouco sua figura paterna. O livro mostra cruamente a realidade das famílias pobres do nosso país, mas não a pobreza glamourizada de hoje e sim a do Brasil de quatro décadas atrás, quando o trabalho infantil ainda era algo veladamente 'aceitável' e as famílias pobres tinham muito menos acesso a bens materiais. Diante da necessidade e da pobreza extrema, as crianças viam-se obrigadas a trabalhar, expondo-se a todo tipo de risco. No caso de Tonico, seus trabalhos nem eram dos mais pesados, embora sua rotina exaustiva o obrigasse a trabalhar durante o dia e estudar à noite. A vida do amigo Carniça, por outro lado, era realmente mais perigosa e nada saudável. Ele não estudava e seus trabalhos de engraxate e entregador de jornais em trens o expunham a todo tipo de violência e insegurança. O livro ganhou uma continuação, Tonico e Carniça. Infelizmente o autor faleceu sem finalizá-lo. Coube a Assis Brasil, amigo pessoal do autor, reunir as anotações e ideias de Rezende Filho e concluir a história.


O Mistério do Cinco Estrelas (1981) - Marcos Rey


A trama se passa no Emperor Park Hotel, um luxuoso hotel cinco-estrelas de São Paulo, que hospeda muitas pessoas importantes. Um dia, quando vai levar uma encomenda para um renomado hóspede permanente, o Barão, Léo acha o corpo de um homem em baixo da cama do quarto. Chama a polícia, mas fica intrigado e resolve investigar o caso por conta própria também, com a ajuda dos amigos Gino, Ângela e Guima. Em meio a muitos sustos e apuros, a investigação paralela à da polícia leva o leitor a suspeitar de todos os que aparecem ao longo do livro. Maior sucesso da Vaga-Lume, O Mistério do Cinco Estrelas já vendeu mais de 3 milhões de exemplares. “O Marcos achava que não sabia como escrever literatura para jovens", disse Palma Donato, viúva do autor, em entrevista ao site G1 [10/03/2015]. "Ele tinha medo de acabar colocando um copo de uísque na mão de um personagem”. Superada a resistência inicial, o escritor terminou por criar um romance policial digno dos clássicos de Agatha Christie. O trio de detetives juvenis criado por Marcos Rey (Leo, Gino e  Ângela) também aparece em outros livros do autor para a coleção, como O Rapto do Garoto de Ouro (1982), Um Cadáver Ouve Rádio (1983) e Um Rosto no Computador (1994).


Meninos sem Pátria (1981/1986) - Luiz Puntel


Lançado originalmente em 1981 pela editora Brasiliense, só entrou para a coleção Vaga-Lume cinco anos depois. É a história de Ricardo e Marcão, filhos de um jornalista perseguido por questões políticas, durante o regime militar. Os dois precisam fugir do Brasil com seus pais. A família, que antes morava na cidade de Canaviápolis, nos anos 1960, passou a ser perseguida após o pai publicar uma coluna social no jornal em que trabalhava. Forçados ao exílio, vão primeiro para a Bolívia e depois para a França. A história é simples e muito cativante, mesmo quando ainda não se entende direito o que é ditadura ou regime militar. A narrativa é feita pelo filho mais velho e, assim, acompanhamos o crescimento e o amadurecimento da família, suas relações, registros e readaptação a novas realidades sociais e culturais. O próprio autor comenta, no prefácio do livro: “Quando foram publicados Deus Me Livre! e Açúcar Amargo, estive em muitas escolas, conversando com os alunos, falando sobre essa necessidade fisiológica que é o escrever. Deparei com as mesmas carinhas de espanto e medo. E agora não eram apenas brasileiros, mas nicaraguenses, argentinos, bolivianos, angolanos, portugueses, uruguaios, chilenos, vietnamitas, todos fugindo de golpes de esquerda e de direita, indistintamente. É para esses garotos, esses meninos sem pátria que o livro é oferecido.”


Um Cadáver Ouve Rádio (1983) - Marcos Rey


O garoto Muriçoca corre para a entrada de um prédio em construção, procurando se proteger da chuva. Atraído pelo som de um frevo, sobe as escadas e se depara com o corpo de um homem caído de costas, ensanguentado. O cadáver encontrado é de Alexandre, mais conhecido como Boa-Vida, um sanfoneiro de quem todos gostavam. Quem o matou e por quê? E o rádio ligado na cena do crime? Essa é a premissa do livro, mais um irresistível romance policial juvenil de Marcos Rey, imbatível no gênero. Leo, Gino e  Ângela, o jovem trio de detetives, resolve investigar o crime, como já haviam feito em O Mistério do Cinco Estrelas. De cara, acharam a arma do crime, uma espécie de sabre chinês, com desenhos orientais no cabo, o que os leva a vários suspeitos. Foi o primeiro livro da coleção Vaga-Lume que li e, nos anos seguintes, não parei mais.


Sozinha no Mundo (1984) - Marcos Rey 


Este é meu favorito de Marcos Rey e um dos que mais gosto da Vaga-Lume. Maria Paula, a Pimpa, é uma menina de 14 anos que perde a mãe, dona Aurora, quando estão se mudando de Serra Azul para São Paulo. Aurora, já doente, acaba morrendo no ônibus. Com a morte da mãe, a jovem fica sozinha no mundo. Seu único parente vivo agora é tio Leonel. Por isso a menina precisa encontrá-lo com urgência. Pimpa possui uma oncinha de pelúcia, Lila, que é sua grande amiga e a acompanha por toda a trama. O bichinho foi um presente que seu pai mandou quando abandonou ela e a mãe, no passado. Na viagem para São Paulo, Pimpa conhece Noel e Berenice, que a ajudam no que podem. Até que aparece uma suposta assistente social, tentando levá-la embora a qualquer custo. Por que aquele repentino interesse em ajudar a pobre menina? Mesmo perseguida pela tal assistente social, Pimpa precisa vencer as dificuldades de viver só em uma grande metrópole. Apesar do viés de drama, a história não deixa de apresentar uma grande dose de suspense, com enredo comovente e também envolvente.


Açúcar Amargo (1986) - Luiz Puntel


Em 1984, os boias-frias de Guariba, a 60 km de Ribeirão Preto, cruzaram os braços e iniciaram uma greve que se espalhou rapidamente por todo o Brasil. Reivindicavam  condições de trabalho digno, com carteira assinada e transporte seguro. Esse foi o ponto de partida que serviu de inspiração a Luiz Puntel para contar a história de Marta. A jovem teve sua vida transformada após um trágico acidente, que culminou na morte de seu irmão. Abalado, seu pai, Pedro, decide mudar de cidade e viver da colheita da cana. Ele culpa Marta pela perda do filho e a impede de estudar. Decidida, a jovem vai atrás de seus sonhos e enfrenta a dura realidade da vida como boia-fria, ao mesmo tempo em que lida com as mudanças e desejos típicos da adolescência. Aos poucos, ela vai entendendo a necessidade e a importância da luta social para conquistar seus direitos. Os livros de Luiz Puntel abordam principalmente problemas sociais e procuram mostrar as diferentes expressões culturais do povo brasileiro. Para ele, “escrever é conscientizar” e sua literatura deve ajudar na formação de jovens cidadãos mais críticos e proativos. Mas ele faz isso de forma instigante e interessante, sem didatismos chatos e sem esquecer de contar uma boa história.


Enigma na Televisão (1986) - Marcos Rey


Uma série de assassinatos de pessoas famosas começa a acontecer nos estúdios da TV Mundial, grande emissora de televisão. Em meio a atores decadentes, atrizes em ascensão e jornalistas apaixonados por livros, Ivo, um jovem e corajoso repórter, segue as pistas da ameaçadora trama armada pelo assassino. Inicialmente, a suspeita recai sobre a Liga das Sentinelas, clube de senhoras que combatem a exibição do que elas classificam como "obscenidades". Como é de costume, muitos outros suspeitos irão surgir. Paralelamente à polícia, Ivo e a continuísta Renata decidem desvendar o enigma da televisão. O pano de fundo da história é muito interessante e curioso, com os bastidores de uma emissora de televisão, o conflito de gerações entre artistas jovens e veteranos, a confusão entre ficção e realidade e outros temas recorrentes nesse meio. Novamente, Marcos Rey se mostrou um exímio mestre na arte do romance policial juvenil, ao bolar um enredo com situações surpreendentes, culminando no irresistível final inesperado.

2 comentários:

  1. Infelizmente a adaptação do ESCARAVELHO foi uma decepção...

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  2. A edição de 1950 de O Escaravelho do Diabo se encontra em alguma biblioteca ou em algum acervo referente a autora que esteja disponível para pesquisa?

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