02 fevereiro 2016

A injusta cruzada contra Cruising


Existem polêmicas capazes de alavancar a atenção que um filme recebe. Também existem aquelas que sepultam a obra impiedosamente. Foi o caso de Parceiros da Noite (Cruising, 1980), longa de William Friedkin que completa agora 36 anos. Um dos diretores mais badalados da década de 1970, Friedkin já tinha, em seu currículo, Operação França (The French Connection, 1971) e O Exorcista (The Exorcist, 1973), dois filmes emblemáticos daquela década. Depois do estrondoso sucesso de O Exorcista, sua carreira entrou numa fase de produções menos expressivas. Até que, em 1979, surgiu a ideia de filmar Cruising.

William Friedkin e Al Pacino nas filmagens de Parceiros da Noite (Cruising)
O filme teve como inspiração uma história real: uma série de assassinatos de homossexuais, ocorridos em Nova York, entre 1962 a 1979. Outra fonte foi o romance A Paquera (Cruising, 1970), de Gerald Walker. Para o roteiro, Friedkin aproveitou o esqueleto narrativo do livro, mas modificou totalmente a abordagem, baseando-se em pesquisas de campo e muitas conversas com pessoas da vida real.

O livro que inspirou o filme
No filme, o policial Steve Burns (Al Pacino) é escalado para investigar os assassinatos brutais de homossexuais, que estavam ocorrendo em Nova York. Achar o serial killer não seria fácil. Mas, motivado pela ideia de crescer dentro da corporação, o policial aceita o desafio de se passar por gay e se infiltrar nos guetos onde as vítimas eram escolhidas: clubes de sadomasoquismo da cidade. Com seu tipo físico semelhante ao das vítimas, Burns era a isca ideal.

Antes mesmo da estreia, em fevereiro de 1980, o filme já gerava polêmica e era rechaçado dentro e fora das comunidades gays. Talvez nem o próprio Friedkin imaginasse que causaria tamanho rebuliço como quando decidiu fazer Cruising. Ativistas gays americanos se lançaram em uma campanha agressiva contra a obra, alegando que um filme sobre um maníaco que matava homossexuais carregava uma visão moralista, preconceituosa e homofóbica. Até jornais importantes, como o Village Voice, aderiram ao boicote. Várias panfletagens em favor dos gays chegaram a ser feitas contra o filme nas filas dos cinemas.

A revista Manchete de 25 de agosto de 1979 trouxe uma matéria sobre as conturbadas filmagens, que estavam acontecendo em Nova York, na época:

Das primeiras páginas dos jornais americanos à imprensa brasileira ou europeia, o assunto ganha ampla divulgação — enquanto grupos gays internacionais também fazem novas demonstrações, dando ainda maior publicidade ao filme. Jerry Weintraub, o produtor, talvez até por tudo isso, tem-se mantido na maior calma e limitou-se a dizer: "A versão deles é que estamos fazendo um filme contra os gays. Mas Cruising não é a história de homossexuais, e sim um thriller cuja ação se passa numa comunidade gay.

Revista Manchete (25/08/1979)
A coisa toda respingou em Al Pacino, um dos atores mais talentosos de sua geração, acostumado a papeis de grande sucesso. Depois do fracasso de Cruising, sua carreira despencou e ele levou anos para se refazer do “trauma”.

A verdade é que o filme não tem a intenção de dizer que os gays são seres obscuros e pervertidos. O foco do filme é um gueto específico — o dos clubes de sadomasoquismo e bares de 'pegação' da época. Um mundo dentro de outro mundo.

Vale lembrar que era o final dos anos 1970, ainda não havia AIDS e a comunidade gay começava a se modelar. Tateando um lugar na sociedade, quase sempre às escondidas, era comum que os gays se esgueirassem em ruas mal frequentadas ou parques desertos durante a noite, para dar vazão aos desejos sexuais reprimidos. Em Nova York, nas vizinhanças mais decadentes, surgiram clubes para homossexuais em busca de sexo anônimo e realização de fantasias sadomasoquistas, especialmente envolvendo sexo grupal, roupas e acessórios de couro.




É exatamente nesse sombrio universo, de extrema promiscuidade e catarse coletiva, que o policial Steve Burns, interpretado por Al Pacino, mergulha. Burns não fazia ideia de como podia ser difícil a vida de um detetive infiltrado no submundo em questão. Ainda mais um submundo cheio de complexos códigos próprios, onde um policial heterossexual e 'careta' como ele dificilmente conseguiria transitar com naturalidade. Aliás, Steve é introspectivo, não tem muita facilidade em articular frases e passa boa parte do tempo calado, o que confere ao filme um clima de permanente solidão (mesmo nas carregadas cenas dos abafados e lotados bares de paquera gay).

William Friedkin abriu mão da narrativa clássica — a perseguição e a consequente captura do assassino — e optou por se concentrar no modo gradual, quase imperceptível, como a experiência vai alterando a visão de mundo e os hábitos do policial, levando-o a questionar sua própria sexualidade (ainda que sem entender direito) e seus limites morais.

O termo cruising, em inglês, pode se referir tanto a “dar uma volta”, de carro, de moto ou a pé, como a “sair à caça”, no sentido sexual. A segunda conotação começou a ser difundida na década de 1970 e virou uma gíria comum entre os homossexuais da época. Exatamente um ano antes do começo das filmagens de Cruising, o Village People lançou seu mais famoso álbum, intitulado justamente Cruisin’. O LP incluía o até hoje conhecidíssmo hit Y.M.C.A. O grupo ficou muito famoso e fez enorme sucesso nas discotecas do mundo todo. Os integrantes encarnavam personagens que normalmente povoavam as fantasias gays e faziam alusão a símbolos de masculinidade: um policial, um cowboy, um operário, um motociclista, um índio norte-americano e um soldado. (A maioria dos personagens do filme, diga-se de passagem, lembra versões mais ‘pesadas’ dos integrantes do Village People. Hoje o visual é datado e caricato, mas nos anos 70 era muito comum entre os gays.)

Na época em que Cruising foi filmado, entre agosto e setembro de 1979, o cantor norte-americano Smokey Robinson lançou a canção Cruisin’, que, apesar de ter o mesmo nome do álbum do Village People, nada tinha a ver com o grupo. A faixa de Robinson também virou hit, apesar de seu significado ser o tradicional, de “passear” ou “navegar”, e não ter nenhuma conexão com a gíria gay.

De um jeito ou de outro, o termo cruising foi bastante difundido na época. No caso do longa, seu título virou sinônimo de algo a ser condenado. Hoje, mais de três décadas depois, é possível assisti-lo com um olhar distanciado das questões da época. A atuação de Al Pacino é irrepreensível, como sempre, e o ator fez com que seu personagem realmente parecesse confuso e assustado e, muitas vezes, pouco à vontade. Fisicamente, Pacino deu uma turbinada nos músculos e fez permanente, aparecendo pela primeira vez com cabelos crespos.  Apesar de um tanto quanto lento, há sempre algo acontecendo no filme e no rumo da história. Muita coisa ficar no ar, talvez devido aos vários cortes que Cruising sofreu em suas filmagens, sem falar nas mudanças do roteiro. Talvez o diretor tenha deixado tantas coisas sem explicação de forma proposital, seja no desenrolar do caso ou na própria personalidade de Burns, que vai se tornando cada vez mais ambígua, à medida que ele se mescla ao obscuro cenário e seus frequentadores.

Al Pacino de cabelos cacheados em Cruising
A atriz Karen Allen, que interpreta a namorada de Steve Burns, não tinha conhecimento do roteiro antes de trabalhar no filme. William Friedkin preferiu que ela ficasse sem saber o que acontecia com o personagem de Al Pacino. Mais uma calculada estratégia para que o clima de dúvida pairasse dentro e fora e Cruising.

Karen Allen e Al Pacino em Cruising
Mesmo para os padrões atuais, o filme tem cenas fortes e bastante ousadas. Grande parte dos figurantes eram frequentadores reais de bares de pegação e clubes gays da época, o que conferiu um realismo extraordinário e, por vezes, até assustador à narrativa. Quanto a esse aspecto, penso que a revolta dos gays não se justifica, pois o filme foi absolutamente fiel na apresentação dos tipos, mesmo estereotipados, desse grupo especifico de homossexuais (ainda que eles não representassem todos os gays).

A crítica da Folha de S. Paulo de 20 de maio de 1981 foi implacável já no título: “Homossexuais numa versão inacreditável”. Para a época, era um retrato realmente chocante de um submundo até então pouco (ou nada) conhecido da grande população:
Todos os homossexuais americanos foram ver o filme, ainda que a maioria deles tenha saído revoltada. Houve protestos, petições indignadas e até passeatas que só fizeram aumentar os lucros e provocaram a introdução de um letreiro, antes do início do filme, explicando: "Não nos colocamos contra o mundo homossexual, apenas mostramos um pequeno segmento dele".

Quando aluguei a fita e vi o filme pela primeira vez, há muitos anos, tive certa dificuldade em diferenciar um personagem do outro, pois todos eram parecidos entre si. Tanto fisicamente quanto no modo de se vestir. Friedkin escolheu filmar os assassinatos em ambientes cada vez mais escuros, de forma que se torna difícil identificar o rosto do matador. Vemos o assassino sempre na penumbra, vemos sua roupa, seus acessórios e até partes de seu rosto, em close, mas nunca o vemos claramente.

Ao longo dos anos, fui assistindo ao filme outras vezes e me familiarizando com os detalhes. E comecei a ter a sensação de que o assassino era interpretado por atores diferentes a cada cena. Depois de assisti-lo dezenas de vezes, voltando, analisando, dando pausa e revendo, descobri que, de fato, o ator que interpreta o assassino variava a cada cena. Daí a dificuldade, nas primeiras vezes, em diferenciar quem era vítima e quem era o serial killer.

Em algumas cenas, um determinado ator vive o assassino. Em outra cena, o ator que tinha interpretado a vítima é mostrado como o assassino. E esse revezamento segue ao longo do filme, mas de forma bastante sutil. Só mesmo após assistir muito atentamente, várias vezes, é que minhas desconfianças tiveram confirmação. Como se a intenção de Friedkin fosse justamente a de nos confundir, ou de nos dizer que a identidade do assassino não é a questão-chave. E que, uma vez que alguém se dispõe a uma experiência dessa, como a do policial Burns, infiltrado em um mundo paralelo quase impossível de ser imaginado, nunca mais será o mesmo.



Perto do fim do filme, a identidade "definitiva" do assassino é revelada. Mas as tramas paralelas ficam sem explicação. Algumas pistas, no entanto, são dadas. Cabe ao espectador imaginar ou tentar deduzir os possíveis desfechos. Cruising se mostra um misto de thriller, filme policial, mistério, slasher e drama psicológico. A ação muda seu ritmo ao longo da história, como se buscasse um ponto, sem, no entanto, encontrá-lo. A Folha de S. Paulo [20/05/1981] não perdoou: “Depois de 100 minutos de hesitação, é natural que o diretor não saiba como terminar o filme. Por isso, ele o encerra de qualquer jeito, sem final, causando uma nova e derradeira frustração.”


O resultado foram três indicações ao Troféu Framboesa de 1981: Pior Diretor (William Friedkin), Pior Filme (Jerry Weintraub) e Pior Roteiro (William Friedkin).

No Brasil, o VHS do filme foi lançado em 1991. Por causa do tema polêmico, a Warner levou vários anos para tomar coragem e lançar Parceiros da Noite em DVD. William Friedkin tentou lançar o DVD com a versão original, incluindo 40 minutos de cenas excluídas pela censura americana, mas o tal material havia sumido misteriosamente do estúdio. Ninguém sabe o que aconteceu. Aqui, o DVD veio sob o selo da Lume, sem extras. Ainda hoje há especulação sobre os 40 minutos de cenas não utilizadas, que permanecem inéditas. Se elas acrescentam explicações importantes à historia, ninguém (além do diretor) sabe.

DVDs brasileiros de Cruising
Em 2013, o ator James Franco e o roteirista Travis Matthews escreveram e dirigiram o documentário fictício Interior. Leather Bar. No filme, a dupla tenta recriar os tais 40 minutos de cenas descartadas (que incluíam, supostamente, cenas explícitas de sexo) que se perderam após o lançamento de Cruising. A ideia do projeto não deixa de ser interessante, mas ele não acrescenta nada ao filme original e nem às perguntas deixadas sem resposta.
Para a gente, pareceu mais interessante retomar um filme polêmico que fracassou na bilheteria do que um clássico" — disse Matthews, quando esteve em São Paulo, em 2013, para apresentar o filme no festival Mix Brasil. "Sempre, quando alguém revisita o passado, busca como referência algo considerado perfeito. Nós não queríamos isso. Nosso interesse foi fazer um filme que usasse Cruising como ponto de partida para explorar o quanto avançamos desde então em termos de censura e em termos da representação da sexualidade gay no cinema. (O Globo, 06/11/2013)


Travis Matthews e James Franco

Mesmo que, ainda hoje, com a passagem do tempo e as mudanças de perspectivas, Parceiros da Noite permaneça incômodo, longe de ser facilmente digerido, o filme merece redenção. É, sem dúvida, um dos mais intrigantes e perturbadores mergulhos psicológicos mostrados no cinema.




Um comentário:

  1. Que post incrível! Até as informações sobre Interior. Leather Bar. estão aí!
    Sobre Parceiros da Noite, acho que a identidade do assassino acaba sendo o menos importante - tanto que há controvérsias e dúvidas imensas sobre ela - acho que a 'transformação' do personagem do Al Pacino é o aspecto mais importante. A questão é que o público esperava um formato tradicional, e o Friedkin preferiu ir além, confundir mais a cabeça das pessoas (que desde sempre têm uma preguiça atroz de pensar).

    É um filmaço.

    ResponderExcluir