25 abril 2015

Curiosa coincidência


O que Bette Davis e Susana Vieira têm em comum? O mais óbvio é que a resposta seja "ambas são atrizes". Grandes atrizes. Mas, além da profissão, elas têm em comum outro fato curioso. Bette (1908-1989) foi uma das maiores atrizes de Hollywood, todos sabem. Duas vezes ganhadora do Oscar, com um total de 10 indicações e quase uma centena de filmes. Ao longo de sua carreira, além do talento, ficou famosa também por ser pioneira na luta por melhores condições de trabalho para sua classe artística. Sua coragem e sinceridade produziam opiniões fortes e, muitas vezes, polêmicas. Temos aqui outra semelhança com Susana Vieira: frases polêmicas. No caso de Susana, muitas acabaram virando brincadeira na internet. E, sem dúvida, ela é reconhecida por protagonizar dezenas de novelas na Globo, há quatro décadas.


Mas uma peculiaridade em especial Bette e Susana têm em comum: ambas gravaram, aos 68 anos de idade, álbuns que ganharam repercussão por se revelarem grandes... embaraços. A tentativa de se aventurar no mundo da música não anula o talento dessas atrizes. Mas, nos dois casos, há quem ache que elas poderiam muito bem ter passado sem essa exposição, digamos, pouco frutífera.


No caso de Bette, Alistair Lawrence conta, em seu livro Abbey Road: The Best Studio in the World (Bloomsbury Publishing, 2012), como foi a execução da ideia:

Um dos álbuns mais incomuns gravados nos estúdios da Abbey Road na década de 1970 foi o da atriz hollywoodiana Bette Davis, seu único disco. (...) Lançado em 1976, Miss Bette Davis - intitulado Miss Bette Davis Sings! nos Estados Unidos - foi uma oportunidade para ela, então com 67 anos, gravar uma coletânea com canções que já havia cantado no cinema e no teatro, bem como diálogos famosos de seus filmes e algumas composições novas. Davis foi convidada a gravar o álbum pelo produtor Norman Newell e por Roger Webb, maestro responsável pelos arranjos musicais.
Como não era reconhecida como cantora pelo grande público, o álbum ficou conhecido por expor os limitados alcances vocais de Davis, apesar dos esforços de seus colaboradores, que deram o melhor de si para adequar o material à capacidade da atriz. Depois de lançado, o álbum foi posto de lado e permaneceu indisponível por vários anos, até ser relançado em 2003. Hoje em dia é considerado raridade e item de colecionador, visto como um erro retumbante porém divertido.



Com Susana Vieira, a gravação também partiu de um convite: do diretor e produtor artístico Samuel Patroti, idealizador do projeto "Brasil Encena". A proposta, como apresentada no próprio encarte do CD, era "apresentar atrizes renomadas da televisão aos holofotes do show business, cantando clássicos da música nacional e internacional, que compõem as trilhas sonoras de novelas, seriados e filmes." 



As músicas receberam novos arranjos e nova roupagem para dar mais destaque ao timbre e a interpretação de Susana. O CD foi lançado no final de 2010 e, na primeira metade de 2011, a atriz fez a divulgação, dando entrevistas para diversas revistas e sites e aparecendo em programas de televisão. O mais marcante de tudo, no entanto, foi sua performance improvisada de Per Amore. Susana cantou desastradamente ao vivo, no Domingão do Faustão, e virou piada na internet instantaneamente.

Bette Davis não foi tão longe com seu álbum, limitando-se apenas a autografá-lo durante seu lançamento. A verdade é que nenhuma das duas atrizes teve a menor pretensão de ser reconhecida como cantora. Ambas demonstraram espirituosidade ao aceitar os convites para gravar um disco. O que deve ter sido uma diversão descompromissada para elas tornou-se diversão obrigatória para seus fãs. 


Tanto o álbum de Bette quanto o de Susana foram lançados quando elas estavam com 68 anos de idade. Cada um dos discos contém 11 faixas, a maioria temas que marcaram suas respectivas carreias. Os álbuns tiveram tiragem pequena e, por isso mesmo, se tornaram itens disputadíssimos entre os fãs das atrizes.

Se os discos não fazem jus às bem-sucedidas carreiras dessas duas atrizes, com certeza valem pela curiosidade. São, sem dúvida, o registro de um momento de suas vidas em que tiveram a coragem de encarar um desafio e dar a mão à palmatória. Só mesmo duas atrizes como Bette Davis e Susana Vieira.


19 abril 2015

Artistas e arteiros


Arte é sempre uma coisa polêmica, capaz de gerar discussões intermináveis. Umas, prolíficas. Outras, quase fatais. Como o gosto é algo muito pessoal e o conceito de arte muito amplo, o bom mesmo é olhar para ela com bom humor. 

Logo que entrei na faculdade, um dos professores pediu que lêssemos O que é arte (Ed. Brasiliense, 1995), de Jorge Coli, daquela coleção Primeiros Passos. Já na introdução do livro, o autor adianta: "Dizer o que seja a arte é coisa difícil. Um sem-número de tratados de estética debruçou-se sobre o problema, procurando situá-lo, procurando definir o conceito. Mas, se buscamos uma resposta clara e definitiva, decepcionamo-nos: elas são divergentes, contraditórias, além de freqüentemente se pretenderem exclusivas, propondo-se como solução única."

Por aí se percebe que o autor vai indicar vários caminhos, possibilidades, argumentações, convenções, mas nunca uma definição única e fechada. Mais adiante, na própria introdução, Jorge Coli esclarece: "Para decidir o que é ou não arte, nossa cultura possui instrumentos específicos. Um deles, essencial, é o discurso sobre o objeto artístico, ao qual reconhecemos competência e autoridade. (...)" 

Qualquer coisa que eu coloque em uma sala branca ou galeria e dê um nome pomposo e sem sentido aparente poderá ser considerada arte? Será que é só atribuir um significado rocambolesco e intrincado, cheio de interpretações (ou viagens) filosóficas, psicológicas, sociológicas e artísticas e voilà, terei produzido uma obra de arte? 

Aí reside o X da questão: cada vez mais, o leque do que é considerado 'arte' se amplia. TUDO hoje em dia pode ser considerado arte e, ao mesmo tempo, frequentemente, NADA do que vemos nos convence de que aquilo pode ser, de fato, arte. 

Polêmicas à parte, prefiro olhar para tudo isso com olhos de quem acha graça de todas essas divergências de opinião e visão, mas de forma respeitosa e espirituosa. Gosto quando humoristas, cronistas ou até os próprios artistas brincam com esse conceito tão variável e tão controverso. Como é o caso do filme Manhattan (1979), de Woody Allen.


Em uma cena hilária, com aquele humor sofisticado e sutil, bem característico dos filmes de Woody Allen do final dos anos 70 em diante, seu personagem (Isaac) está com a namorada Tracy (Mariel Hemingway) vendo uma exposição de arte. Passeiam entre as obras, trocam opiniões despretensiosas e, de repente, encontram Yale (Michael Murphy), amigo de Isaac, com uma moça, Mary (Diane Keaton). Todos estavam vendo a exposição. Apresentações e cumprimentos feitos, começa o seguinte diálogo:


Isaac: Estávamos lá embaixo, na Galeria Castelli. Vimos a exposição de fotos. Incrível!
Tracy: Verdade, é muito boa!


Mary: Mesmo? Vocês gostaram?
Isaac: Das fotografias, no andar de baixo? Sim, são incríveis, grandiosas! Você gostou?
Mary: Humm não. Senti que são muito derivativas. Pra mim pareciam cópias da obra de Diane Arbus, mas sem a genialidade.


Isaac: Sério? É... Não gostamos tanto quanto da escultura de acrílico.
Mary: Mesmo? Então você gostou do acrílico.
Isaac: Por que? Você também não gostou do acrílico?
Mary: Hummm... Interessante. (faz cara de desdém)


Isaac: Achei muito melhor que o cubo de aço. Você viu?
Mary: Aquilo sim foi genial! Totalmente genial.


Isaac: O cubo de aço, você achou genial?
Mary: Sim. Achei que tem muita textura, entende? É perfeitamente integrado. Tem um tipo maravilhoso de capacidade negativa. O resto das coisas lá embaixo é besteira.


É claro que lendo não tem tanta graça. As expressões dos personagens na cena são impagáveis. O constrangimento pela divergência de opiniões, a vontade de demonstrar a compreensão das obras, o gosto pessoal, enfim, essa cena de Manhattan sempre me vem à memória quando vejo pessoas discutindo arte. Todos querem parecer intelectuais, cultos, complexos e, ao mesmo tempo, morrem de medo de dar bandeira de que aquela é apenas uma humilde opinião pessoal.

Carlos Eduardo Novaes, em seu divertidíssimo livro de crônicas O Caos Nosso de Cada Dia (Ed. Nórdica, 1974), abre o capítulo "O Vale Tudo da Arte" assim:

Custei mas afinal compreendi por que no dia em que - nos meus sete anos - equilibrava um castiçal de opalina em cima de um raro bibelô de porcelana chinesa, em cima de uma fruteira de cristal, em cima de uma bandeja de prata, minha mãe, entrando de repente na sala, me repreendeu:
- Não faça arte, menino.
Afinal compreendi. E sinto agora uma certa frustração. Se minha vocação não tivesse sido cortada na infância, hoje com certeza eu - como qualquer um de vocês - poderia estar me consagrando nesta XII Bienal de Arte de São Paulo. Sim, porque, a considerar pelos trabalhos expostos, a Bienal procurou reunir muito mais arteiros do que artistas.

Apesar de escrita no começo dos anos 70, a crônica continua atualíssima. De lá pra cá, em matéria de arte, acho que nada mudou. A coisa só aumentou: cada vez mais, vemos instalações, pinturas e esculturas que nos deixam atônitos (se é no bom ou no mau sentido, fica a critério de quem observa). Um punhado de privadas enfileiradas, um monte de carrinhos de supermercado espalhados num salão, tijolos de obra empilhados de forma aleatória, ferragens distorcidas, objetos comuns jogados aparentemente com displicência, telas com borrões que não se diferenciam de rabiscos feitos por crianças de jardim de infância e por aí vai... É o vale tudo da arte, com o qual Carlos Eduardo Novaes brincou em sua crônica.

Instalação do artista plástico José Damasceno (1997)
O tema foi, é e sempre será controverso. Para o ator Peter Ustinov (1921-2004), "Se Botticelli vivesse hoje, estaria trabalhando para a Vogue". Oscar Wilde (1854-1900) foi bem mais radical: "Toda arte é absolutamente inútil". Já o o dramaturgo irlandês George Bernard Shaw (1856-1950) prognosticou: "Se mais de 10% da população gostar de um quadro, ele deveria ser queimado. Deve ser muito ruim". Para a escritora Dorothy Parker (1893-1967), "a arte é uma forma de catarse", enquanto para Voltaire (1694-1778) "é preciso ter o diabo no corpo para alcançar êxito em alguma arte". Picasso (1881-1973) disse que "a arte representa a mentira que nos faz perceber a verdade". As opiniões são as mais variadas e diversas possíveis. Mas gosto particularmente do que disse o historiador e intelectual americano Richard Hofstadter (1916-1970): "A vanguarda de ontem é o chique de hoje e o clichê de amanhã". 


13 abril 2015

O primeiro Truffaut a gente nunca esquece


Um dos filmes menos conhecidos de François Truffaut, o constantemente subestimado Uma Jovem Tão Bela Como Eu (Une belle fille comme moi, 1972) foi meu primeiro filme do diretor francês. A paixão foi imediata. Na época — começo da minha adolescência — eu havia gravado do Corujão, meu deleite nas madrugadas da Globo. Assisti ao filme um sem-número de vezes desde então e sempre me surpreendi por quase nunca ter lido muitas críticas ou elogios ao filme, que considero um dos melhores de Truffaut.


Foi feito pouco antes do aclamado A Noite Americana (La nuit américaine, 1973), ganhador do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. A mistura de humor negro, suspense e romance é irresistível, apesar de tratar-se de um filme simples. Não tem atores conhecidos, efeitos especiais e nem cenas antológicas. Mas essa aparente simplicidade não deixa de ser fascinante. 

Camille (Bernadette Lafont) e Stanislas (André Dussollier)
O jovem sociólogo Stanislas Prévine (André Dussollier) está prepara um tratado sobre mulheres criminosas, que será publicado como livro. Para sua pesquisa de campo, vai à cadeia entrevistar Camille Bliss (Bernadette Lafont). Camille é, como disse uma das agentes de segurança da prisão, apenas "uma vagabundinha sem interesse". Mesmo assim, Stanislas abre mão de entrevistar criminosas de peso para se dedicar à bela Camille.

O contraste da irresistível malandragem e esperteza de Camille com a ingenuidade e caretice de Stanislas é cômico. Aos poucos, ao contar sobre sua vida e os fatos que levaram à sua prisão, a jovem criminosa seduz não apenas o sociólogo mas também o espectador do filme.

Philippe Léotard, Gilberte Géniat e Bernadette Lafont em foto de divulgação do filme
As histórias de Camille, mostradas em flashback, são sempre recheadas de "apostas da fatalidade" (uma expressão usada por ela própria), distorcidas para serem convenientes e mostrarem a moça como uma pobre vítima da sociedade. Mas de vítima ela não tem nada.

Trechos da crítica de José Carlos Avellar, publicada no Jornal do Brasil de 30/07/1973: 

Para Stanislas a vida de Camille é um caos impossível de existir sem razões e justificativas precisas e identificáveis. O mundo em si mesmo parece não ter qualquer sentido fora de uma organização que só o conhecimento científico possa dar, e por isso Stanislas interpreta de forma complicada, e sempre errônea, cada uma das vigarices de Camille. (...) 
Não se trata de uma conversa em tom sério, à maneira intelectual, mas de uma exposição materializada em dois personagens e numa série de acontecimentos leves bem ao estilo do cinema americano. O confronto entre a ingenuidade de Stan e a malícia cheia de vida de Camille é feita em termos simples. Ela mesma conta sua história ao gravador, e frequentemente um contraponto entre a imagem e o som mostra o que Camille procurou disfarçar com palavras. (...)

Bernadette Lafont está ótima como Camille. A atriz já havia trabalhado anteriormente com Truffaut no primeiro filme do diretor, o curta Os Pivetes (Les Mistons, 1957). 

Truffaut dirige Bernadette Lafont no set de Uma Jovem Tão Bela Como Eu

Bernadette Lafont encarnando Camille Bliss
Uma Jovem Tão Bela Como Eu foi baseado no romance Such a Gorgeous Kid Like Me (1967), do escritor e roteirista americano Henry Farrell (mais conhecido como o autor do livro What Ever Happened to Baby Jane?, que se tornou um clássico do cinema).




No fim, o filme, apesar do constante flerte com o humor negro, deixa uma pontada de melancolia no ar, assim como a promessa de uma espera que poderá - ou não - ter um final satisfatório, como deixa no ar a canção J'attendrai, na voz de Rina Ketty.