15 outubro 2014

Cacá vira O Dono do Mundo


O saldo da reprise de Dancin' Days é positivo. O canal Viva acertou ao escolher esse clássico da teledramaturgia brasileira. Em sua reta final, a trama de Gilberto Braga já começa a deixar saudade.

Muito já se escreveu sobre Dancin' Days. Tanto livros, jornais e revistas quanto a própria internet provam que é patente o sucesso da novela. Ao assisti-la hoje em dia, é possível olhar com nostalgia e até afeto para aquela época - nem tão distante assim - que parecia tão avançada em 1978, e hoje parece ter acontecido há um século.


Curiosamente, a reprise do Viva criou um grupo considerável de novos fãs, gente que nasceu bem depois da novela. Mesmo para essa nova geração, Dancin' Days é um nome familiar. Primeiro pelo sucesso inesgotável da música-tema, até hoje muito tocada, e segundo porque todo mundo conhece alguém que viu Dancin' Days na época. 

É interessante observar como a sociedade funcionava, como era o comportamento das pessoas, as modas, modismos e o jeito de 'transar' a vida, para usar uma expressão recorrente na novela. O produto em si - a novela - apesar de familiar, é bem diferente do que estamos acostumados hoje.

Sonia Braga e Antônio Fagundes: Julia e Cacá
Poucos personagens formam o quadro de Dancin' Days, mas todos eles têm uma história bem definida e profundidade emocional, com nuanças bem visíveis ao logo da história. Passam por diferentes fases, se modificam. Tudo muito natural. Ou "lento e gradual", para usar outra expressão bem em voga naqueles tempos de abertura política.

O grande trunfo de Dancin' Days é mais a riqueza psicológica dos personagens do que a trama em si. A história é um melodrama clássico, transposto para o final da década de 1970. O texto, bem elaborado, é cheio de diálogos que soam verdadeiros. Não era algo muito comum na época. Gilberto Braga aproximou o cotidiano dos personagens do dia a dia das pessoas, salpicando trivialidades que conferiam extrema naturalidade à fala dos personagens.



Não que tudo tenha sido perfeito. Cacá, o próprio galã da novela, apesar de arrancar suspiros de dez em cada dez mulheres da época, era um personagem taciturno, retraído, cheio de inseguranças e indecisões. A revista Veja de 24 de janeiro de 1979 (última semana da exibição original de Dancin' Days) trouxe uma matéria de seis páginas, de grande destaque, com uma análise aprofundada do personagem Cacá e da carreira de Fagundes até então. 
(...) um dos mais estranhos heróis já apresentados para todas as pessoas que se reúnem diante de seu aparelho de TV. Para começar, a personagem é covarde e pensativa (até demais) num mundo frequentemente dominado pelas ações espetaculares e empolgantes. (...)
Cheio de sutilezas e duplos sentidos, Cacá atravessaria quase três anos de sua vida (o equivalente a seis meses e dezesseis dias de novela) como uma pobre vítima de quase todos os conflitos que afligem uma pequena parte do mundo - aquele restrito círculo presente nas colunas sociais dos jornais, dono de automóveis e sobrenomes retumbantes. Era tão angustiado que nem ligava para o dinheiro, mas sofria demais com a profissão fina, mas para ele errada (a diplomacia), com a repressão familiar, com as mulheres e até mesmo com as artimanhas da psicanálise (...).
(...) Cacá contou com toda a ajuda da Rede Globo para comover e empolgar as platéias mais diversas. Seu layout foi, inclusive, cuidadosamente planejado pela emissora e nisso se inclui tanto as camisas Lacoste como o cabelo em desalinho, tênis e calça jeans, gravatas antigas que voltam à moda e, para arrematar, óculos de aro fino (...).


Com esse papel, Antônio Fagundes se firmou como um dos maiores galãs nacionais e provou que era capaz de segurar um personagem central, ainda que pouco usual.Bem diferente do estereótipo do galã, que geralmente é sedutor, forte e carismático. Em muitos momentos da trama, fica até difícil torcer por Cacá, diante de sua aparente apatia e submissão à mãe e às convenções sociais. Felizmente, na reta final, ele acorda. 

A reportagem, de Paulo Moreira Leite e Regina Echeverria, também fazia um balanço da novela em sua fase final:
(...) Gilberto Braga (...) acabou indo além das receitas de sempre. Escreveu uma história que teve um começo alucinante, um meio arrastado e um final que promete grandes, mas esperadas, emoções. (...)
(...) O papel de homens e mulheres aparece invertido - as personagens masculinas são muito frágeis e delicadas, passivas mesmo, enquanto as femininas (...) desempenham as funções de comando na história inteira.
(...) Quais as consequências disso? Em primeiro lugar, as mulheres acabam formando um universo à parte na novela, o das figuras dominantes; em segundo, começam a cultivar relações roçando levemente no tema do homossexualismo. Senão, como explicar a fantástica história de Dirce (Sandra Campos), a companheira de cela de Júlia que planeja assaltar um insignificante cinema de subúrbio só para se encontrar com a amiga, naquele momento trabalhando de bilheteira? E, ainda, como entender as ambíguas lembranças que Júlia e Solange (Jaqueline Laurence) trazem de sua viagem de dois meses à Europa?
A matéria termina falando do trabalho seguinte de Fangundes na TV, Carga Pesada (ainda com título provisório na época), que só estrearia quatro meses depois:
Depois do último capítulo de "Dancin' Days", Fagundes só voltará em maio, como Pedro, personagem principal de "A Estrada", um dos novos seriados da Globo. Cacá se despede do público com sua missão cumprida, deixando a certeza de que o Antônio Fagundes que vai embora não era nenhum galã de enfurecer as mocinhas - mas apenas um grande ator que a novela mostrou de uma maneira tão fugaz como o efeito de um lança-perfume.
Cacá sai de cena e dá lugar a O Dono do Mundo, outra trama de Gilberto Braga protagonizada por Fagundes. O último capítulo da reprise de Dancin' Days, semana que vem, deixará o público do Viva com saudade de outras grandes personagens que roubaram a cena, como as de Joana Fomm, Gracinda Freire, Yara Amaral e Lídia Brondi. Mas os 35 anos que separam o último capítulo daquela longínqua semana de 1979 e o último capítulo de semana que vem não têm nada de fugaz. Pelo contrário. Continuam bem vivos em nossa memória afetiva, abrindo as asas e soltando as feras.

06 outubro 2014

Leitura partilhada por várias gerações


Outubro, "mês das crianças". E o comércio, cada vez mais, estimula a compra de presentes (especialmente brinquedos) para os pequenos. Nada contra. Eu também fui criança e adorava ganhar presentes. Semana passada mesmo recebi um e-mail de uma editora de livros, divulgando uma promoção: "Nesse Dia das Crianças, presenteie com livros". Achei bacana. Afinal, se é para presentear as crianças, por que não com livros? Lembrei de como eu adorava ganhar livros na minha infância.

Por mais que pareça improvável, crianças gostam de livros sim. É comum ouvir as pessoas mais velhas dizendo que os jovens de hoje não leem mais. Mas de uns tempos pra cá, a coisa parece ter mudado. Na última década, os livros de ficção infantojuvenil viraram febre entre crianças e adolescentes. Até adultos entraram na onda de vampiros, feiticeiros ou guerreiros, em sagas que renderam um sem-número de continuações e similares.

Quando eu era criança, os livros da coleção Biblioteca Infantil da Livraria Quaresma ajudaram a  despertar em mim o prazer da leitura. Tinham pertencido à minha mãe e ao meu tio. Meu avô havia comprado e dado de presente pra eles, na década de 1950. Nos anos 80, descobri a coleção - já muito datada e obsoleta - na estante da casa da minha avó. Dali em diante, passei uns bons anos com aqueles personagens povoando meu imaginário. Eu havia aprendido a ler há pouco tempo e comecei a me fascinar por aquele universo empoeirado e, aparentemente, esquecido.

Três livros da coleção que "herdei": guardo até hoje.

Assinei meu nome nos livros, com aquele orgulho de criança
que acabou de aprender a escrever o próprio nome

Em sua tese Brasil em imaginação: livros, impressos e leituras infantis (1890-1915), Andréa Borges Leão, Doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo, explica o começo dessa coleção:

A partir dos anos de 1890, Pedro da Silva Quaresma, comerciante de livros populares do Rio de Janeiro, iniciou um movimento de nacionalização do livro de literatura infantil. Diante do que argumentava ser a desigualdade entre o universo linguístico dos textos traduzidos do francês para o português de Portugal e o das crianças brasileiras, Quaresma encomendou ao romancista Alberto de Figueiredo Pimentel a compilação dos contos que andavam dispersos na tradição oral brasileira, não em um só livro, mas em toda uma coleção escrita na linguagem cotidiana. (...) 
No dia 14 de abril de 1894, foi publicado o primeiro volume da Biblioteca Infantil da Livraria Quaresma: o livro Histórias da Carochinha. Logo após, surgiram Histórias da Avozinha (1896), Histórias da Baratinha (1896), Histórias do Arco da Velha, Histórias de Fada, Contos do Tio Alberto, Os Meus Brinquedos, Teatrinho Infantil, O Álbum das Crianças, Castigo de um Anjo e O Livro das Crianças. 
(...) 
Os Contos da Carochinha, as Histórias da Avozinha e as Histórias da Baratinha alcançaram grande êxito entre a criançada, e sucessivas tiragens para Pedro da Silva Quaresma.

Vários daqueles contos eram releituras de fábulas já conhecidas. Outros, nem tanto. Eram histórias curtas, recheadas de fantasia, sentimentalismo excessivo e até mesmo toques sombrios. A maioria com uma moral no final. Coisas engraçadas também tinham vez, mas quase sempre pendendo para um humor negro.


A página de abertura dos livros já anunciava: "Esplêndida coleção dos mais célebres contos populares, morais e proveitosos de vários países, alguns traduzidos dos Irmãos Grimm, Perrault, Andersen, Madame d'Aulnoy etc., e outros recolhidos diretamente da tradição oral."

As pequenas ilustrações - muito modestas, se comparadas às gravuras das publicações de hoje - eram de Julião Machado, célebre ilustrador português do final do século XIX. Junto com as histórias, os desenhos também me atraíam, porque davam apenas uma pequena pista do que seria lido. Eram suficientes para despertar a curiosidade, mas não a ponto de saciar a imaginação. E isso era ainda mais instigante.

"O Filho Ingrato", "Berta, a Esperta", "As Três Fiandeiras", "As Moedas Caindo do Céu", "O Chouriço", "A Centenária", "A Forca" e "O Papagaio Real" foram algumas das histórias que li e reli durante muito tempo, espalhados nos volumes da coleção.






Toda leitura é enriquecedora. Minha intenção não é dizer quais livros as crianças e os jovens devem ler. Mesmo quando se questiona a "qualidade literária" das obras, o importante é cativar leitores novos que, no futuro, poderão apreciar também outras formas de literatura. E feliz Dia das Crianças que leem!